Água gelada e cérebro: oxigenação, frio e sobrevivência
Água gelada e cérebro: oxigenação, frio e sobrevivência
(Consciência em Primeira Pessoa • Neurociência Decolonial • Brain Bee • O Sentir e Saber Taá)
O Sentir e Saber Taá
Eu imagino meu corpo entrando, aos poucos, numa banheira de água gelada.
Primeiro, os pés gritam. Depois, as pernas endurecem. O peito segura a respiração como se o ar tivesse virado pedra.
No começo, é quase pânico:
o coração acelera,
a respiração quebra em pequenos golpes,
a cabeça parece encolher dentro do crânio.
Mas se eu fico ali, alguns minutos, algo muda:
o corpo encontra um novo tipo de equilíbrio dentro do frio. A respiração começa a alongar, o coração desacelera, e eu sinto um foco estranho, quase espiritual — como se meu cérebro ligasse um modo de sobrevivência lúcido.
Enquanto fNIRS e NIRS medem oxigenação no cérebro e nos músculos em protocolos de cold water immersion (CWI), eu sinto por dentro a pergunta científica:
O que acontece com meu cérebro e com meu corpo quando a água fria me obriga a negociar com o limite?
Estudos recentes usando fNIRS e NIRS mostram que a água gelada altera profundamente:
a oxigenação cerebral e muscular,
a resposta vascular,
e toda a coreografia de termorregulação que sustenta a vida.
Nesse ponto, eu também percebo outra camada:
Percebo que até as palavras que uso para descrever esse frio foram colonizadas.
Que o idioma com que penso o corpo e o cérebro foi moldado para me reduzir: reduzir meu corpo a órgão, minha mente a cálculo, minha espiritualidade a superstição, minha política a consumo. É por isso que tantos neurocientistas evitam fazer perguntas que poderiam revelar aquilo que a ciência colonial não sabe nomear.
Mas quando eu sinto meu corpo antes de pensar — quando Taá se manifesta — eu percebo que não existe separação entre Neurociência, Política e Espiritualidade. Aqui, espiritualidade é Utupe, é memória semântica viva, é Xapiri se movendo no hiperespaço mental. O que coloniza não é só a história: é a palavra que nos impede de existir inteiros. Cada descoberta científica, quando lida com coragem, é uma fresta de liberdade que rompe a Zona 3 e devolve o corpo ao que sempre foi: território vivo de mundos possíveis.
E é nesse lugar que eu leio os dados sobre água gelada e oxigenação.
A pergunta científica: frio, oxigênio e risco
Vários estudos recentes investigam imersão em água fria usando fNIRS e NIRS:
Cérebro e frio extremo: fNIRS monitorando oxigenação cerebral, função vascular e respostas termorregulatórias em protocolos militares de exposição ao frio.
Músculos e recuperação: NIRS em atletas de endurance para medir consumo de oxigênio muscular (mVO₂) antes e depois de imersão em água a 10–15 ºC.
Controle neuromuscular: fNIRS em córtex motor e pré-frontal depois de exercício seguido de CWI, avaliando propriocepção e controle de movimento.
A pergunta que atravessa todos esses trabalhos é:
O frio intenso protege ou ameaça?
Ele preserva a função cerebral e muscular ou empurra o corpo para um colapso silencioso?
Métodos: fNIRS, NIRS, GLM e fisiologia no limite
1. Medindo o cérebro com fNIRS
Nos estudos com cérebro e água fria, sensores fNIRS são colocados sobre o córtex pré-frontal e outras regiões para monitorar:
O₂-Hb (oxigênio)
HHb (desoxihemoglobina)
tHb (hemoglobina total)
A análise inclui:
GLM (General Linear Model) para modelar a resposta hemodinâmica (HRF) durante fases de imersão, recuperação, tarefa cognitiva ou teste de equilíbrio.
Ajustes de HRF para considerar atrasos e diferenças individuais de resposta.
Em alguns trabalhos, ICA/PCA ajudam a separar ruídos sistêmicos (respiração, batimento, vasoconstrição global) de sinais mais regionais.
2. Medindo músculos com NIRS
Em atletas submetidos à CWI, NIRS é colocado em músculos como gastrocnêmio ou quadríceps para medir:
mVO₂ (consumo local de oxigênio),
O₂-Hb, HHb, tHb ao longo de 20 minutos de imersão.
A análise combina:
protocolos de oclusão vascular para calcular mVO₂,
séries temporais analisadas com FFT e modelos lineares para entender a cinética da oxigenação.
3. Integração cérebro–corpo
Em estudos mais integrados:
fNIRS monitora pré-frontal,
NIRS monitora músculo,
sinais cardíacos, respiratórios e de temperatura são registrados,
e análises multivariadas (PCA, regressões) buscam entender como o frio redistribui energia entre cérebro, músculo e pele.
Resultados principais: quando a água fria negocia com a vida
Os achados convergem em alguns pontos:
Cérebro
Em algumas condições, a imersão em água fria reduz a oxigenação cerebral (queda de O₂-Hb), ao mesmo tempo em que o corpo aumenta esforço termorregulatório.
Em outras configurações, especialmente em protocolos graduais e controlados, há elevação transitória de oxigenação cerebral para proteger o cérebro do resfriamento localizado.
Músculos
A CWI após exercício reduz mVO₂ e o metabolismo muscular – um tipo de “hibernação local” que pode auxiliar na recuperação, mas também retardar processos de adaptação se usada de forma excessiva.
Controle neuromuscular e equilíbrio
Após CWI, o controle de equilíbrio e a propriocepção podem ser alterados, com mudanças na ativação pré-frontal observadas por fNIRS durante testes de postura e tarefas motoras finas.
Em resumo:
Água gelada não é “boa” ou “má” — ela é um estressor poderoso que reorganiza prioridades do corpo, muitas vezes protegendo o cérebro à custa de extremidades, ou preservando núcleo térmico à custa de performance imediata.
Lendo isso com nossos conceitos
Mente Damasiana e frio
Na nossa linguagem, o frio intenso é uma perturbação radical da interocepção:
o corpo deixa de ser “fundo silencioso”
e vira protagonista absoluto.
A Mente Damasiana, que integra interocepção + propriocepção, é forçada a reorganizar fluxos de atenção:
sobreviver agora,
pensar depois.
É um exemplo extremo de Zona 1 biológica: ação imediata.
Eus Tensionais no limite térmico
O frio convoca Eus Tensionais específicos:
o Eu que luta para respirar,
o Eu que contrai músculos para manter calor,
o Eu que entra em foco intenso para manter equilíbrio numa superfície escorregadia.
Depois de alguns minutos, outro Eu pode emergir:
um Eu de aceitação, de rendição lúcida, que lembra a imagem de “A Nave Interior” de Zé Ramalho — uma embarcação atravessando um mar estranho, mas guiada por um núcleo interno que não congela. A arte latino-americana aqui não é adorno: é mapeamento simbólico desse trânsito entre risco e consciência ampliada.
DANA, oxigenação e sobrevivência
Do ponto de vista da DANA (inteligência do DNA):
a vasoconstrição periférica,
o aumento de fluxo para órgãos vitais,
a possibilidade de usar frio para preservar tecido cerebral em situações críticas
são expressões de um código que vem de milhões de anos de sobrevivência.
O frio extremo é um experimento natural que mostra até onde o DNA permite o corpo negociar com o ambiente.
Zona 2 dentro do gelo
Em protocolos controlados e seguros, algumas pessoas relatam estados de:
clareza,
foco,
presença absoluta no corpo.
É um vislumbre de Zona 2 emergindo dentro de uma Zona 1 controlada:
o frio intenso como porta para fruição,
desde que o risco seja administrado,
e o corpo não esteja à beira do colapso.
Aqui aparece uma pergunta para nossas cidades:
por que só “acordamos” o corpo em extremos (gelo, dor, exaustão)?
Onde a ciência ajusta nossas ideias
A ciência com evidência corrige, por exemplo, o mito de que “água gelada sempre faz bem” ou “sempre melhora performance”:
mostra que cerebralmente pode haver queda de oxigenação em determinadas condições;
revela que efeitos positivos dependem de temperatura, duração, momento pós-exercício e contexto térmico;
evidencia que o cérebro nem sempre “relaxa” no frio — muitas vezes ele entra em estado de alerta termorregulatório, com custo cognitivo.
Isso nos protege de narrativas simplistas, tanto de wellness colonizado quanto de discursos militares que romantizam resistência física sem falar de dano real.
Implicações normativas para educação, saúde e política LATAM
Uso responsável de CWI em esporte
Protocolos devem ser desenhados considerando fNIRS/NIRS, não só “sensação de recuperação”.
Evitar aplicar o mesmo protocolo para todos sem levar em conta diferenças individuais de HRF, mVO₂ e estado basal.
Saúde pública e exposição ao frio
Políticas para populações vulneráveis expostas a frio extremo devem considerar que cérebro e equilíbrio postural são afetados, aumentando risco de quedas e acidentes.
Pesquisas LATAM e justiça térmica
Em regiões andinas, amazônicas ou do sul do continente, o frio não é moda de biohacking: é realidade ecológica.
Pesquisas com fNIRS/NIRS em contextos locais podem revelar como povos tradicionais modulam oxigenação e termorregulação com técnicas próprias (banhos, rituais, respiração).
Neurodireitos e extremo fisiológico
Exposições a frio em ambientes de trabalho, militarização ou “treinamentos extremos” precisam ser reguladas com base em evidências de risco cerebral e vascular, não em narrativas heroicas.
Palavras-chave para busca científica
“cold water immersion cerebral oxygenation fNIRS Military Medicine 2025 usaf570”
“Jones 2024 cold-water immersion muscle oxygen consumption NIRS J Athl Train”
“Wu 2024 post-exercise cold water immersion neuromuscular control fNIRS”
“prefrontal cortex hemodynamic responses cold water immersion balance 2025”
Se quisermos libertar o corpo latino-americano da ideia de que ele só serve para aguentar dor e frio impostos, precisamos olhar para esses dados com Taá:
sentir o impacto do gelo por dentro,
entender a fisiologia sem mito,
e construir políticas onde o frio deixa de ser instrumento de exaustão e passa a ser, no máximo, uma ferramenta consciente de cuidado — nunca de opressão.